Nós evitamos falar de videogames clássicos no Retrocomputaria, embora isto não signifique que não nos interessemos por eles. Por isso, na primeira oportunidade que tive (leia-se MSX Jaú 2011), comprei o livro “1983: o ano dos videogames no Brasil” (Edição por Demanda, 2011), já citado pelo Ricardo em episódios do podcast.
Resumo tl;dr: um excelente livro para os interessados em videogames e eletrônica de consumo, apesar de alguns reparos e algumas lacunas na parte analítica – boa parte, assumo, de coisas que só devem incomodar a mim.
Poucas pessoas que não estavam diretamente envolvidas com o mercado da época tem mais bagagem que o autor, Marcus Garrett (entre outras coisas, fundador do clube Canal 3 e da revista eletrônica Jogos 80), para escrever o livro; com seu conhecimento da área e seu rigor de biblioteconomista, condensou num livro pequeno (pouco mais de 100 páginas) e de fácil leitura (letras grandes e muitas imagens) um grande número de dados, todos devidamente catalogados, com destaque para revistas cujas editoras já faliram.
(Uma observação: tempos esquisitos estes que vivemos, em que é necessário perder um bom pedaço de um capítulo dizendo que não há intenção de ferir direitos autorais de terceiros, quase eclipsando o esforço hercúleo de conversão de preços feita pelo autor)
O segundo capítulo do livro, e o primeiro que analisaremos, tenta dar uma ideia do cenário econômico do Brasil de 1983. Aqui se concentram minhas diferenças em relação ao caminho trilhado pelo autor:
- achei que faltaram informações sobre o estado caótico das contas externas da economia brasileira (justo num dos piores anos da crise da dívida dos anos 80!) e sobram citações à Reserva de Mercado, uma política que apenas em um caso (a impossibilidade da Philips de usar a plenitude do teclado do Odyssey) afetou um setor (e aí falando da eletrônica de consumo em geral, não apenas dos videogames) que, certamente, não era visto como de “importância para a segurança nacional” pelos militares. Mesmo o ato da SEI de outubro de 1982, proibindo a remessa de royalties sobre importação de software, é mais um dos atos desesperados para evitar a saída de dólares do que propriamente uma política de reserva;
- sobre a importância do contrabando e dos empreendedores (que se aproveitaram de brechas na lei e do “jeitinho brasileiro” para empreender) para a formação do mercado de videogames no Brasil: é natural que, numa situação desesperadora como a do início dos anos 80, o grande empresariado se tornasse refratário à entrada em mercados desconhecidos, que exigiam um grande investimento de capital e tinham um retorno questionável – basta ver que o primeiro estudo patrocinado por uma grande empresa para sancionar a existência de um mercado de videogames foi feito pela Gradiente, em 1983.
O terceiro capítulo fala da “era que antecedeu os cartuchos” – Telejogo, relógios com jogo da Casio, “joguinhos de mão” (Game&Watch) da Nintendo, um capítulo correto. Depois desse capítulo, entramos no centro do livro.
Começamos pelo Atari 2600, que foi o grande líder do mercado brasileiro. Achei bem interessante a citação aos empreendedores, como a Atari Eletrônica em hardware e ao Canal 3 (nada a ver com o clube) e Dynacom, em cartuchos. Mas acho que o mais interessante, mesmo, é como Marcus conseguiu visualizar que não apenas o anúncio da vinda oficial da Atari via Gradiente/Polyvox mas também os tropeços da produção inicial e os atrasos do lançamento (um estudo de caso dos problemas de se fabricar com baixo índice de nacionalização em situações cambiais adversas) ajudou a fortalecer um mercado de clones, com nomes grandes da época (CCE, Dismac) e pequenas empresas que se tornaram nomes conhecidos (Dynacom, Milmar).
Depois, o Odyssey, da Philips (embora tenha chegado primeiro por uma pequena empresa chamada Planil, importando o videogame e embalando aqui); o autor entendeu corretamente que a Philips aproveitou bem a vantagem de ser o first mover no mercado nacional de massa (leia-se com entrada nos grandes magazines), entre abril e outubro, mas faltou um pouco de informações sobre a empresa não ter mudado sua estratégia quando a blitz de marketing da Gradiente/Polyvox inundou o mercado brasileiro de Atari.
O próximo é o Intellivision, trazido pela Mattel em parceria com a Sharp do Brasil (que, na época, era do grupo Machline, que usava o nome sob licença da Sharp japonesa) na joint-venture Digimed, depois Digiplay. Senti falta de informações sobre os atrasos na produção, que por pouco não fizeram a Digimed perder o Natal de 1983, mas pelo menos teve citação à TV POW!
E o último da lista é o Colecovision, o único não bancado por um grande player da eletrônica de consumo nacional da época (e que, portanto, acabou praticamente desconhecido no Brasil). A história da falha da CBS (detentora dos direitos do Colecovision onde a Coleco não atuava) em conseguir um parceiro nacional merece ser melhor contada.
Para fechar o livro, um capítulo sobre o Natal de 1983, o “Natal dos videogames”. Um capítulo pequeno para uma grande história, de como os videogames salvaram um dos natais mais trágicos de um dos anos mais trágicos da “década perdida”.
No final, apesar dos escorregões, um livro delicioso de se ler e que deve ser item obrigatório em qualquer biblioteca de interessados em videogames clássicos e, porque não, retrocomputação.