Outra opinião: O Golpe do Micro Doméstico

Este artigo é uma tradução de The 8-bit Home Computer Bait and Switch, publicado no blog Nerdly Pleasures e postado aqui com permissão do autor.

No início dos anos 80, consoles de videogame e micros domésticos competiam entre si pelo bolso do consumidor. Os micros, particularmente os da Commodore, eram propagandeados como algo que serve para muito mais do que jogos (coisa que eles também faziam direitinho). O papai poderia gerenciar as finanças domésticas, a mamãe poderia ter um banco de receitas, e as crianças poderiam aprender com programas educacionais e digitar os trabalhos do colégio em um processador de texto. Assim os computadores domésticos eram apresentados ao consumidor nas prateleiras das lojas. A princípio, os mais amigáveis em termos de preço e capacidades eram o Atari 400 e (com alguma boa vontade) o 800, os Commodores VIC-20 e 64, o TI-99/4A e o TRS-80 Color Computer. Os da Apple, muito caros, eram populares entre hobistas, educadores e pequenos empresários. Os da IBM (ainda mais caros) eram comprados quase que exclusivamente por usuários corporativos e empresas de desenvolvimento de software.

Até os consoles de videogame começaram a entrar na onda. O Odyssey2 vinha com um teclado completo — de membrana, praticamente inútil para qualquer trabalho sério. O Intellivision, o ColecoVision e o Atari 5200 tinham teclados numéricos. A Mattel chegou a desenvolover dois teclados para o Intellivision, mas não conseguiu colocá-los no mercado. Ela também lançou o fraco Aquarius, que teve pouco sucesso. O Atari 2600, só para constar, tinha um cartucho BASIC e controladores alternativos para programação, de desempenho pífio devido às severas limitações de hardware. E a Coleco também lançou um computador, o Adam, que nada mais era que um ColecoVision acrescido de um teclado e gravador cassete. Não foi bem-sucedido.

Infelizmente, a idéia do dispositivo de computação tudo-em-um continuava batendo de frente com a realidade. Todas essas máquinas foram projetadas para exibir informações em TVs domésticas. Nenhuma delas tinha um modo de 80 colunas, o que tornava difícil fazer processamento de texto a sério. Os PCs da IBM tinham, todos, 80 colunas de texto, e os Apple II que não tinham podiam ser expandidos. Além disso, os teclados da maioria dos micros domésticos passava longe da qualidade de máquinas de escrever, e nenhum deles tinha um teclado numérico por padrão.

Depois de passada a sensação de novidade de digitar um trabalho no micro, o Joãozinho provavelmente voltou a escrevê-los à mão. Não devia ser fácil digitar num teclado chiclete ou membrana xexelento, com uma imagem cheia de chuviscos na TV. Já que isso demandava tempo, o Joãozinho provavelmente era expulso para a TV menor — se na casa houvesse uma. No início dos anos 80, ter duas TVs a cores ainda era um luxo para a família americana média, então o trabalho tinha que ser feito numa TV preto-e-branco. Normalmente, na cozinha ou numa mesa pequena que não foi projetada para se usar um computador. E, com as impressoras matriciais da época, obter um resultado legível era um processo demorado, barulhento e frustrante. Se a qualquer momento houvesse um erro de disco ou a força caísse, adeus trabalho. E não nos esqueçamos das velocidades de lesma dos disquetes e fitas cassete disponíveis para máquinas de 8 bits.

Software corporativo de qualidade era difícil de aparecer para essas máquinas. Quase não se via WordStar ou VisiCalc. Expansões de RAM além de 48 ou 64 KB não eram suportadas por falta de padronização. Os IBM PC podiam naturalmente ir a 640 KB, e quando a planilha Lotus 1-2-3 se tornou popular isso passou a ser importante. O Apple IIe podia, oficialmente, ser expandido a 128 KB — e extra-oficialmente a muito mais.

Uma grande vantagem dos computadores domésticos sobre os PCs e Apple II era a capacidade gráfica. Os gráficos do Apple II foram projetados nos anos 70, e o CGA da IBM não impressionava ninguém. Os micros da Atari podiam gerar 256 cores, e os da Commodore e da Texas geravam 16 cores distintas e sólidas. Para jogos com qualidade de fliperama, essas máquinas também tinham suporte a sprites no hardware, o que melhorava muito a performance em CPUs de 8 bits (principalmente em jogos com muitos objetos na tela) comparado com micros mais orientados ao escritório.

Outra vantagem: as máquinas de 8 bits tinham chips de som embutidos, capazes de reproduzir sons de fliperama (ruído de fundo, efeitos sonoros, vinhetas musicais) muito melhor que os alto-falantes internos dos Apple e IBM. Músicas longas em jogos só se tornaram comuns no final dos anos 80, mas programas de ensino musical e composição como Music Construction Set e Bank Street Music Writer eram muito populares.

Mais uma: havia razoável compatibilidade de periféricos. Os joysticks do Atari 2600 funcionavam em todos os micros da Atari, nos Commodores 64 e VIC-20, e no TI-99/4A. (A exceção era o CoCo, que usava joysticks analógicos.) A interface de programação para joysticks era fácil e bem suportada. A IBM e a Apple não lançaram joysticks como padrão para a maioria dos seus sistemas, e os que existiam eram analógicos. A maioria dos jogos lançados na época preferiam joysticks digitais.

Ainda que a promessa do computador como eletrodoméstico universal continuasse distante, as máquinas mais baratas eram excelentes para jogar. Empresas como a Activision sobreviveram ao crash do mercado de videogames passando a desenvolver para micros domésticos. A Electronic Arts adotou a plataforma Atari 8 bits, e mais tarde a da Commodore, e tiveram grande sucesso. A maioria dos fabricantes de jogos fizeram ports para Apple II, Atari 8 bits, Commodore 64, PC e mais tarde Atari ST, Amiga e Macintosh. Nos EUA, no entanto, por fins dos anos 80 praticamente todos os fabricantes de jogos perceberam que a IBM seria o futuro e concentraram seus esforços exclusivamente nessa plataforma.

Pitaco do tradutor: creio que faltou mencionar um aspecto importantíssimo dos primeiros micros domésticos: eles serviram como laboratório e sala de aula para milhões de pessoas aprenderem a programar. O surgimento dessa horda geek teve consequências tectônicas para a sociedade.

Por outro lado, concordo com o autor que a suposta utilidade dos bichinhos para “coisas sérias e úteis do cotidiano” era vastamente superestimada. Discutam.

Sobre Juan Castro

Juan Castro é uma das mentes em baixa resolução que compõem o Governo de Retrópolis – a única cujo Micro Formador não foi o MSX (e sim o TRS-80). Idealizador, arquiteto e voz do Repórter Retro. Com exceção do nome, que foi ideia do Cesar.

0 pensou em “Outra opinião: O Golpe do Micro Doméstico

  1. Chamar a “Onda do Micro Doméstico” de “golpe” é o mesmo que chamar a “Onda dos Tablets” de “golpe”.

    Se até hoje a maioria absoluta da população é analfabeta digital, o que dizer dos anos 80? Além das limitações óbvias descritas no texto, o fato é que simplesmente não havia demanda para processamento de texto doméstico!

    (durante *toda* a década de 80, a única coisa feita por computador que meus professores aceitavam eram a capa do trabalho – eles *exigiam* manuscritos à mão ou à maquina de escrever! Imagino que problemas semelhantes existiram no fim da década de 70/começo de 80 pelos EUA).

    A microcomputação doméstica foi um modismo – mas um modismo que “deu certo”. Ao contrário dos tablets, que estão revolucionando apenas a forma com que (algumas) pessoas consomem informação, o micro doméstico causou uma revolução cultural.

    Os tablets nos deram os hipsters e a onipresença das redes sociais, que permitem a ostentação em tempo real e a banalização das relações de consumo (eu ia dizer relações interpessoais, mas a verdade é que a maioria involui para consmo mesmo =P).

    Os micros domésticos nos deram os nerds que promoveram a revolução digital, e uma miríade de novas culturas de nicho que antes eram simplesmente impossíveis.

      1. Um termo usado pela minha avó que deve servir mais adequadamente: “chamarisco”

      2. “Bait & switch” é tática para aliciamento de usuários de drogas.

        Eu achei o uso deste termo, no texto original, muito apelativo: comparou a indústria da época a traficantes, e nós a drogados. =/

    1. Só um comentário, Lisias: O q é considerado um analfabeto digital? O Brasil tem 100 milhões de usuários de Internet, logo sabem acessar as interwebs, de uma forma ou de outra. Claro, n fazem (quase) nada q preste por lá. Mas analfabetos digitais, na minha concepção, são pessoas como minha mãe, q n quer aprender de jeito nenhum a usar um caixa eletrônico. E n é burrice, é teimosia mesmo.

      Agora, se fosse analfabeto funcional… Putz, tive um monte em sala de aula esse ano! 🙂 Ainda bem q reprovei vários. 😀

      1. Pegue uma pessoa que sabe ler e escrever (ou seja, “alfabetizada). Dê à ela um aparelho que ela nunca viu na vida. Observe como ela não sabe o que fazer.

        Era este o status quo no começo da década de 80.

        Gente instruída (engenheiros, advogados, médicos) e culta, mas incapaz de programar o relógio do videocassete – quanto mais operar um micro-computador. 🙂

        Não existe a menor chance de comparar de forma justa o grau de instrução digital da população contemporânea com a daquela época.

        Pô. Até morador de rua está conectado à internet hoje em dia!

        http://img.ezinemark.com/imagemanager2/files/30003693/2010/12/2010-12-23-16-09-33-9-the-old-homeless-uses-a-laptop-illustrating-image.jpeg

        1. Essa sua definição de analfabeto digital é a q eu concordo. Hj em dia isso é muito menor, convenhamos. Minha mãe inclusive sente-se “discriminada” por n querer mexer c/ isso. Até a pouco tempo ela levantava p/ trocar o canal da TV, tal a repulsa dela. E meu pai é analista de sistemas aposentado, informática sempre foi o q bancou a casa.

          Sim, ela é chata nisso. 😀

          Aliás, isso q vc falou me lembrou uma imagem q tá no meu celular, dessas q bóiam pelas interwebs da vida, onde mostra uma professora q tem graduação, mestrado, doutorado, mas não sabe ligar o datashow. Pior é q eu tenho colegas assim, do curso técnico de Informática.

  2. Alguns comentários aleatórios:

    O texto tem uma visão bem estadunidense da história (pelos modelos citados, o crash dos videogames etc), mas mesmo assim não deixa de ser interessante. o fato de que o computador doméstico era vendido como solução para “tos problemas de todos na casa” é algo que não podemos questionar.

    Porém é importante ressaltar que o mesmo argumento é utilizado ainda hoje para o mesmíssimo propósito! A única diferença para os da época é terem acrescido o item “acesso à Internet” (e as empresas que vendem acesso adotaram a mesma ladainha dos que vendem computadores). — ou seja, o golpe ainda cola!

    Tanto (uma das encarnações d)a caixa do Atari 800XL quanto do Commodore 128 (as duas que tenho) mostram o uso do computador para jogos, educação e cuidar das tarefas sérias, o mesmo podia ser visto nas caixas do Expert e Hotbit. Sejamos sinceros, eles (os pais) não iriam querer investir em mais um videogame para a casa. Creio que algumas empresas até tentaram e estimularam mas esbarraram no “preconceito” das desenvolvedoras de software em querer fazer algo para “computadores de brinquedo”.

    No final tiveram que elas mesmas desenvolver os programas que elas precisavam que os computadores delas tivessem. Bons exemplos são o MSX Write da ASCII (precisa de um pouco de abstração pra escrever em 40 colunas mas depois você deslancha), o ASTEX da Gradiente (o melhor processador de textos feito pra MSX), os programas da CCE-SOFT para o MC-1000, o Appleworks da Apple e a lista vai embora incluindo ainda fabricantes como Philips, Sony, Atari, Matsushita, Acorn, Amstrad etc.

  3. Eu tiraria o Appleworks da comparação, porque o Apple //e sempre foi muito usado em automação comercial – o Apple II fez sucesso entre os hobbystas, mas desde os tempos que do Apple /// que o alvo da Apple era o mercado profissional, e não o doméstico (vide os preços…).

    O Appleworks é uma suíte profissional. Não tem (quase) nada comparável na linha de 8 bits. Eu diria que o competidor mais próximo foi o Symphony, da IBM – mas já para micros de 16 bits.

    Na minha opinião, o GEOS (e sua súite de aplicações) parece ser um exemplo mais interessante. *Muito* menos poderoso que o AppleWorks, mas extremamente mais fácil de usar, mimetizando a UI mais moderna da época. 🙂

    1. Citei o Appleworks com base da iniciativa do fabricante do equipamento desenvolvendo o software; o GEOS no C64 era legal mas no C128 ele conseguiu um hardware interessante onde executar, porém veio razoavelmente tarde.

      1. Eu entendi.

        E foi justamente por isto que fiz o meu comentário. A Apple, já nesta época, não tava mais muito interessada no mercado doméstico – veja o tratamento dado ao IIgs (*O* micro doméstico da época) em comparação ao MacIntosh. 🙂

        O AppleWorks foi feito para dar sobrevida ao Apple //e, quando este começou a enfrentar concorrência do IBM XT.

        O GEOS veio para dar aos usuários domésticos (ele foi feito para o C64,e só então portado para outras plataformas) um vislumbre do que a ‘Computação Comercial’ estava vivendo (leia-se Mac System 6).

  4. concordo 100% com o texto … a aplicação era jogar e deu …
    com raríssimas exceções (nerds incluidos)
    Luis Garcia

  5. Só pra mencionar: meu vizinho fez a tese de doutorado dele num C64!

    1. Eu mesmo usei bastante para fazer trabalhos da faculdade tanto o MSX Write quanto o MSX Word (ou Tass Word). No caso do MSX Write, depois que você abstraía o lance das 40 colunas você ia embora e até esquecia que o papel tinha o dobro da largura.